sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Um dia brochante


Hoje é um dia comum como qualquer outro, em que saio de casa pelas 14h, pedalando, até meu trabalho, no qual chego vinte minutos depois. Meu horário de entrada é às 15h. Chego, toco a campainha, respondo ao sinal do meu colega de trabalho - que eu desça ao portão do estacionamento; a porta da recepção é de vidro, fosco. Desço e espreito à sombra do poste, fugindo do sol escaldante de Ribeirão Preto.
O portão se desliza e deslizo-me eu sobre rodas adentro do estacionamento mau ilumidado e frio do pequeno hotel.
- Boa tarde!, digo eu.
- Boa tarde, Carlos, amigo do Augusto - me responde uma voz brincalhona e sadia - O "menino´penumbra". Sabe por que? - sinalizo que não; ele continua - É porque você sempre fica na penumbra do poste, nunca quer se queimar...
Dou uma risada discreta, educadamente.
- Vai lá Carlos, boa troca!
Entro no pequeno banheiro e sigo o ritual: bolsa na tampa do vaso, tiro os chinelos, a calça (a substituo por uma melhor) e a camisa (igualmente), passo um cinto... e saio trocado.
Carteira no bolso, chave no outro, celular na mão avisando a esposa do sucesso da chegada...
Travo a bicicleta num beco escuro, com corrente (nem sempre nessa ordem) e subo as escadas, duas e curtas, vagarosa e relaxadamente. Cumprimento a copeira e mais alguém que há no caminho, mas nada espalhafatoso; não sou de cumprimentos energéticos, ao menos não nesse ambiente.
- E aí Carlos, amigo do Augusto? Era aquela briga: teu pai queria Carlos, tua mãe queria Augusto; aí disseram: vamos acabar com isso! E então ficou Carlos Augusto... E aí beleza? Tudo tranquilo? Descansou? Como tá as coisas, vai bem? - mas não espera resposta e emenda: - Tá. Vamos lá; to terminando aqui; pode contar o caixa, é bom que você já me libera... foi uma correria aqui hoje, um monte de coisas pra fazer... Imagine o patrão? A gente nesse mundinho já fica perdido, imagine ele no dele, com mais de cinco empreendimentos pra governar?
E nisso ele continua a falar, vez e outra mudando de assunto. Os assuntos, sempre os mesmos: ética, política e religião. Os polêmicos; eu me interesse mais pelo último, e ele sabe.
É porque aconteceu isso e acolá... que o hóspede quer pagar dez reais, bagunçar tudo, devorar o frigobar e sair batendo no seu ombro te chamando de trouxa... que falar que é cristão é fácil, bater no peito e...
- Já contei o caixa.
- Tá certinho?
- Certo.
- Então, tá. To indo. Graças a Deus que tá certo! Maravilha! Mas conferiu, né? Pode conferir... sem pressa eu...
- Está certo. Já conferi - encerro.
Ele se despede, enquanto eu vou organizando as coisas a meu modo, um tanto diferente do dele, aconselha, assegura admoesta... e vai falando, se esquecendo até que está de partida...
- Ok. Agora vai lá senão não vai aproveitar nada do descanso - aproveito uma pausa ou a causo.
- Oh, cara, brigadão! Vou mesmo... Fica com Deus e bom trabalho! E não esquece: firmeza, firmeza! Você é o dono do hotel; o hotel está em suas mãos! Tchau, tchau-tcau-tchau...
E, enfim, se vai!
Meu dia começa.
Observo a lista, verifico email, reservas, chat, site, rede social do hotel... confiro o estoque... ligo o boiler...
Logo chega um hospede com reserva. Faço o checkin. Mais tarde ele volta à recepção, pergunta se posso chamar um taxi pra ele ("sim, claro!"), pega um cafezinho e um biscoito. Toma um pouco do café e em seguida molha o biscoito dentro do copinho e...
Tchararm! Metade do biscoito retorna, a outro fica no copo.
Ele olha pra mim, eu sorrindo.
- É horrível quando isso acontece, né?, pergunto.
- É -  responde - É muito brochante isso!
- Eu, - emendei - houve um tempo, trabalhava, estudava, cursava, tirava CNH, prestava vestibulares, namorava uma menina que me esquentava a cabeça... Quando, à noite, ia fazer revisão, também aproveitava pra jantar; e, de repente, apagava! Apagava! Acordava com a cara dentro do prato de comida... É tenso...
- Na verdade - arqueia ele as sobrancelhas - isso nunca me aconteceu. Já comecei a estudar e acordei cinco horas depois sem perceber que havia dormido: isso sim!
Um pingo de silêncio.
- Você fez o que?
- Parei com um ano e meio, Pedagogia - respondi.
- Hm...
- O que você cursou - pergunto - Medicina, Direito...? - tento adivinhar...
- Engenharia - me responde.
- De quê?
- Materiais.
- E como tem sido o retorno?
- Nenhum - faz sinal desgostoso com a cabeça.
- Como? - pergunto, sem entender.
- É. É isso. Nenhum... A coisa tá feia. Me formei há dois anos, não consegui um estágio e estou desempregado! Começaram a demitir engenheiros em 2011 aqui no Brasil, e só tem piorado.
- Nossa - pasmo - eu havia tido um pré-conceito diferente da realidade que você me apresenta agora...
- Você acha que tenho cara de riquinho...? - se esquiva ele.
- Não, não é isso... - defendo - Imaginava que um curso de Engenharia galgaria um status melhor pro profissional que a dominasse...
- É, mas não; não hoje! Pra você ter noção estou vendendo cosméticos, autônomo.
Pasmo e calo.
Um silêncio mais longo. Um pingo mais grosso.
O taxi dele chega e a conversa se acaba onde já havia acabado: no fim.


Nascimbene, 2016.

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